quarta-feira, 8 de setembro de 2010

VIDAS SECAS ( ou HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA MISERÁVEL)



“Os pobres vivem pela morte e só ela é sua única esperança”.



O drama está mais perto e bate à porta. Um sábado à tarde. A jovem de cabelos pretos, lisos e desgrenhados, pés sujos e rachados, vinha caminhando como uma autômata, empurrada pelo vento. Devia ter uns 20 anos. Entretanto, sua anemia extrema, seus olhos fundos, todos os ossos à mostra (exceto aqueles que o “short” roto e a desfiada blusa negra encobriam) teimam em lhe dar muito mais idade. O que ela conta lacera a alma, liqüefaz os olhos. (Sei: há miséria em todo canto, no mundo todo; mas, a miséria vizinha, a miséria ao vivo, em cores, colada ali, como dói...).



Antes de tudo, ela pede uma “ajuda”. Precisa juntar dez reais até antes do fim da tarde. Por quê? Para quê? Sua irmãzinha, de dois anos, estava morta desde o dia anterior, em um hospital da cidade. Conseguira o caixão com “o gerente” de uma loja comercial e agora faltava completar a “taxa do enterro”. De ontem para hoje o que conseguiu totalizava... um real (mostra as moedinhas). Já andara muito, já pedira mais ainda, não tomara café nem almoçara... nem hoje nem ontem. De que a criança morrera? Pneumonia. Não tinham dinheiro para comprar “os remédios”. Disse que foi à “farmácia do SUS”. Não tinha “remédio” pra pneumonia. Voltou, de mãos abanando. A receita tornou-se papel inútil. Esboço de óbito individual. Atestado de falência múltipla. Sequer pôde conseguir a água de coco recomendada para a criancinha. Com nada de hidratação, nada de alimentação, nada de medicação adequadas, a criança voltara ao hospital... para morrer. Morrer de fome e descaso.



O diagnóstico deveria ser “pneumonia associada a pobreza” — material e moral. Imoral.



Mas, para um pobre, desgraça pouca é bobagem. Outros dois irmãos, menores, subvivem ali numa casinha alugada, um desses desvãos da cidade. E os pais, o que fazem? O pai morreu faz três anos. A mãe é paralítica e vegeta em cima de uma cama. Recebe uma pensão mais miserável do que a vida que leva. Um salário-mínimo para pagar aluguel, água, energia... Sobram mais ou menos uns 70 reais. Se forem destinados apenas para comida, dá uma média (divididos por 30) de dois reais e trinta e três centavos por dia, embora tenha mais meses de 31 dias do que de 28. Como são quatro pessoas na casa, já descontando a irmãzinha morta, cabem 58 centavos diários para cada, a serem divididos por três refeições diárias (você, leitor, não acha que essas pessoas têm direito a café da manhã, almoço e jantar?). Pois bem: 58 centavos divididos por 3 (refeições), o resultado: 19 centavos para serem “gastos” em cada “refeição”. Quem se habilita? Quem é o mágico?



Quando é indispensável comprar um remédio, um sabão, vai faltar para o “de comer”. “Por isso — diz a moça magrinha, olhos tristes de lágrimas —, tem dias que a gente come, tem dias que a gente não come”. (A naturalidade, o olhar sem ódio, a voz sem cobrança, o tom sem indignação, a nenhuma raiva com que esses seres humanos dizem isso, meu Deus!... Que gentes, melhor, que almas são essas? De onde vêm assim, tão resignadas, tão simplórias, tão conformadas?...).



As pessoas dessa família não têm dinheiro, quer dizer, direito a merenda, roupa, calçado, remédio, educação, cultura, lazer, cinema, bombons, bolas, bonecas, frutas, vitaminas, academia de ginástica, cursos de inglês, aulas de informática, sessões de terapia, tênis para “jogging” e “footing”, computador, “videogame”, assinatura de jornal, revista, TV a cabo, bicicleta, automóvel, “jet-ski”, férias no Caribe, festa de 15 anos, aniversários... Não têm direito a caixa postal, “Internet”, “home-page”, “e-mail”... Não, essas pessoas não vivem, não estão no mapa (só o da fome), não estão no mundo. Ou, como despetala Baudelaire, nas suas “Flores do Mal”: os pobres vivem pela morte e só ela é sua única esperança.



À exceção dos períodos eleitorais (que as inclui, anônimas, no “grande elenco” do circo-teatro político), famílias abandonadas, mães paralíticas e filhos esmoleres não existem. A fruição, o gozo, o prazer terreno fecham-se para eles. A única coisa que se lhes abre é a porta da indiferença. Corações, abraços, consciências, oportunidades, bolsos, cerram-se... São tão miseráveis, estão tão abaixo da linha da pobreza que sequer têm o direito de morrer em paz. Não tem onde caírem mortos. Antes disso, antes do suspiro final, têm de fazer um último esforço, têm de sofrer a humilhação derradeira: mendigar um caixão, a taxa do cemitério, o “agrado” do coveiro.



De um jeito ou de outro, conseguem. Porque, enfim, será ali, numa cova rasa, que seus corpos, mortos, atingirão a igualdade que lhes foi negada em vida: ali todos os órgãos inermes haverão de apodrecer, suas carnes decompostas transformar-se-ão em banquete de vermes, seus líqüidos pútridos e gosmentos adubarão capins e farão florescer rosas, seus miasmas misturar-se-ão ao ar da noite que todos os vivos inalarão, e seus fantasmas e almas e o pó de seus ossos haverão de resistir até o dia do juízo final, da remissão dos pecados e, queira Deus, do começo da paz eterna.



Enquanto isso... de que sorriem os abastados abestados abostados?

P. S. - Naquela tarde, a moça magra não precisou caminhar mais.


Edmilson Sanches

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